segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Morangos Mofados - Caio Fernando Abreu

Prelúdio
No entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali e era assim que se via. Era dentro disso que precisava mover-se sob o risco de. Não sobreviver, por exemplo — e queria? Enumerava frases como é-assimqile-as-coisas-são ou que-se-há-de-fazer-que-se-há-de-fazer ou apenas afinal que importa. E a cada dia ampliava-se na boca aquele gosto de morangos mofando, verde doentio guardado no fundo escuro de alguma gaveta.
Allegro Agitato
Pois o senhor está em excelente forma, a voz elegante do médico, têniporas grisalhas como um coadjuvante de filme americano, vestido d0 bege, tom sur tom dos sapatos polidos à gravata frouxa, na medida justa entre o desalinho e a descontração. Não há nada errado com o seu coração nem com o seu corpo, muito menos com o seu cérebro. Caro senhor. Acendeu outro cigarro, desses que você fuma o dobro para evitara metade do veneno, mas não é no cérebro que acho que tenho o câncor, doutor, é na alma, e isso não aparece em check-up algum.
Mal do nosso tempo, sei, pensou, sei, agora vai desandar a tecer considerações sócio-político-psicanalíticas sobre O Espantoso Aumento da Hipocondria Motivada Pela Paranóia dos Grande Centros Usbanos, cara bem barbeada, boca de próteses perfeitas, uma puta certa Vt disse que os médicos são os maiores tarados (talvez pela intimidade colstante com a carne humana, considerou), e este? Rápido, analisou: no máximo chupar uma boceta, praticar-sexo-oral, como diria depois, escovando meticuloso suas próteses perfeitas, naturalmente que se o senhor pudesse diminuir o cigarro sempre é bom, muito leite, fervido, é claro, para evitar os cloriformes, ar puro, um pouco de exercício, cooper, quem sabe, mais pensando no futuro do que em termos imediatos, claro. Mas se o futuro, doutor, é um inevitável finalmente alguém apertou o botão e o cogumelo metálico arrancando nossas peles vivas, bateu com cuidado o cigarro no cinzeiro, um cinzeiro de metal, odiava objetos de metal, e tudo no consultório era metal cromado, fórmica, acrílico, anti-séptico, im-po-lu-to, assim o próprio médico, não ousando além do bege. Na parede a natureza-morta com secas uvas brancas, peras pálidas, macilentas maçãs verdes. Nenhuma melancia escancarada, nenhuma pitanga madura, nenhuma manga molhada, nenhum morango sangrento. Um morango mofado — e este gosto, senhor, sempre presente em minha boca?
Azia, má digestão, sorriso complacente de dentes no mínimo trinta por cento autênticos (e o que fazer, afinal? dançar um tango argentino, ou seria cantar? cantarolou calado assim “quiero emborrachar mi corazón para olvidar um toco amor que más que amor fue una traición’ tinha versos à espreita, adequados a qualquer situação, essa uma vantagem secreta sobre os outros, mas tão secreta que era também uma desvantagem, entende? nem eu, versos emboscados da nossa mais fina lira, tangos argentinos e rocks dilacerantes, com ênfase nos solos de guitarra). Um tranqüilizante levinho levinho aí umas cinco miligramas, que o senhor tome três por dia, ao acordar, após o almoço, ao deitar-se, olhos vidrados, mente quieta, coração tranqüilo, sístole, pausa, diástole, pausa, sístole, pausa, diástole, sem vãs taquicardias, freio químico nas emoções. Assim passaria a movimentar-se lépido entre malinhas 007, paletós cardin, etiquetas fiorucci, suavemente drogado, demônios suficientemente adormecidos para não incomodar os outros. Proibido sentimentos, passear sentimentos, passear sentimentos desesperados de cabeça para baixo, proibido emoções cálidas, angústias fúteis, fantasias mórbidas e memórias inúteis, um nirvana da bayer e se é bayer. Suspirou, suspirava muito ultimamente, apanhou a receita, assinou um cheque com fundos, naturalmente, e saiu antes de ouvir um delicado porque, afinal, o senhor ainda é tão jovem.
Adagio sostenuto
Quando acordou, o sol já não batia no terraço, o que trocado em miúdos significavá algo assim como mais-de-duas-da-tarde. Tinha tomado três comprimidos, um pela manhã, outro pelo almoço, outro antes de dormir, só que juntos — e o gosto persistia na boca. Strawberry, pensou, e quis então como antigamente ouvir outra vez os Beaties, mas ainda na cama teve preguiça de dar dois passos até o toca-discos, e onde andariam agora, perdidos entre tantas simones e donnas summers, tanto mas tanto tempo, nem gostava mais de maconha. Acariciou o pau murcho, com vontade longe, querendo mandar parar aquele silêncio horrível de apartamento de homem solteiro, a empregada não viria, ele não tinha colocado gasolina no carro, nem descontado cheque, nem batalhado uma trepadinha de fim de semana, nem tomado nenhuma dessas pré-lúdicas providências-de-sexta-feira-após-o-almoço, e precisava. Precisava inventar um dia inteiro ou dois, porque amanhã é domingo e segunda—feira ninguém sabe o quê.
Acendeu um cigarro, assim em jejum lembrando úlceras, enfisemas, cirroses, camadas fibrosas recobrindo o fígado, mas o fígado continuaria existindo sob as tais fibras ou seria substituído por? Ninguém saberia explicar, cuecas sintéticas dessas que dão pruridos & impotência jogadas sobre o tapete, uma grana, imitação perfeita de persa. O telefone então tocou, como costuma às vezes tocar nessas horas, salvando a página em branco após a vírgula, ele estendeu a mão, tinha dedos até bonitos ele, juntas nodosas revelando angústia & sensibilidade, como diria Alice, mas Alice foi embora faz tempo, a cadela que eu até comia direitinho, estimulando o clitóris comme ilfaut, não é assim que se diz que se faz que se. O telefone tocou uma vez mais, e como se diz nesses casos, mais uma e mais outra e outra mais, enquanto com uma das mãos ele ligava o rádio libertando uma onda desgrenhada de violinos, Wagner, supôs, que tinha sua cultura, sua leitura, valquírias, nazismos, dachaus, judeus, e com a outra acariciava o pau começando a vibrar estimulado talvez pelos violinos, judeus, davis.
O telefone parou, o telefone não fazia nenhum som especial ao parar, mas deveria arfar, gemer quando entrasse fundo, duro e quente, judeuzinho de merda, deve estar metido naquele kibutz no meio da areia plantando trigo, não, trigo acho que não, é muito seco, azeitonas quem sabe, milho talvez, a cabeça quente do pau vibrava na palma da mão, foi no que deu ficar trocando livrinho de Camus por Anna Seghers, pervitin por pambenil, tesão se resolve é na cama, não emprestando livro nem apresentando droga, anote, aprenda, mas agora è troppo tarde, tudo já passou e minha vida não passa de um ontem não resolvido, bom isso. E idiota. E inútil.
Levantou de repente. Foi então que veio a náusea, só o tempo de caminhar até o banheiro e vomitar aos roncos e arquejos, onde estão todos vocês, caralho, onde as comunidades rurais, os nirvanas sem pedágio, o ácido em todas as caixas-d’água de todas as cidades, o azul dos azulejos começando a brilhar, maya, samsara, que às vezes voltava. De súbito lisérgico no meio de uma frase tonta, de um gesto pouco, de um ato porco como esse de vomitar agora as quinze miligramas leves leves. Alice abria as coxas onde a penugem se adensava em pêlos ruivos, depois gemia gostoso, calor molhado lá dentro. Neurônios arrebentados, tem um certo número sobrando, depois vão morrendo, não se recompõem nunca mais, quantos me restarão, meu deus e a mão de pêlos escuros de Davi acariciando as minhas veias até incharem, quase obscenas, latejando azul-claro sob a pele. Sabe, cara, quando te aplico assim com a agulha lá no fundo, às vezes chego a pensar que. Noites sem dormir e a luz do dia esverdeando as caras pálidas e as peles secas desidratadas e as vozes roucas de tanto falar e fumar e falar e fumar. Vomitou mais. Nojo, saudade. Sou um publicitário bem-sucedido, macio, rodando nas nuvens, o Carvalho me disse que rodando-nas-nuvens é do caralho, que achado, cara, você é um poeta, enquanto olho pra ele e não digo nada como eu mesmo já rodei nas nuvens um dia, agora tou aqui, atolado nesta bosta colorida, fodida & bem paga. Strawberryfields: no meio do vômito podia distinguir aqui e ali alguns pedaços de morangos boiando, esverdeados pelo mofo.
Andante ostinato
Nem ontem nem amanhã, só existe agora, repetia Jack Nicholson antes de ser morto a pauladas, enquanto ele espiava Davi jogado no fundo do poço tão profundo que precisaria de uma escada para descer até lá, evitando os escombros da cidadezinha que era ao mesmo tempo Kõln após a guerra e o Passo da Guanxuma, com aquele lago no centro de onde sem parar partiam ou chegavam barcos, nunca saberia, e não importa, Alice corria entre os ciprestes do cemitério sem túmulos enquanto ele gritava Alice, Alice, minha filha, quando é que você vai se convencer que não está mais do outro lado do espelho, até encontrar Billie Holiday em pé na escada entre paredes demolidas, aqueles degraus subindo para o nada, com Billie no topo decepada, solta no espaço de escombros repetindo e repetindo “you’ve changed, baby oh baby, you’ve cbangedso much’ estendeu a mão para socorrer John Lennon mas quando abriu a boca sangrenta, feito um vento preso numa caixa fugiu aquele horrível cheiro de morangos guardados há muito tempo, como um vento vindo do mar, um mar anterior, um mar quase infinito onde nenhuma gota é passado, nenhuma gota é futuro, tudo presente imóvel e em ação contínua, o cheiro de maresia era o mesmo do hálito da pantera biônica de cabelos dourados. Ah tantos anos de análise freudiana kleiniana junguiana reichiana rankiana rogeriana gestáltica. E mofo de morangos.Gritaria. Mas acordou com o plim-plim eletrônico antes sequer de abrir a boca. O vento fresco da madrugada embalava as cortinas brancas feito velas de um barco encalhado, uma nau com todas as velas pandas, não adianta chorar, Alice, já falei que é loucura, pára de bater essas malditas carreiras, teu nariz vai acabar furando, melhor ser monja budista em Vitória do Espírito Santo ou carmelita descalça em Calcutá ou a mais puta das puras na putaqueapariu, não me olhe assim do fundo do poço, não me encham o saco com esse plim-plim hipnótico, eu fico aqui, meu bem, entre escombros.Desligou a televisão, saiu para o terraço de plantas empoeiradas, devia cuidar melhor delas, não fosse essa presença viva dentro de mim corroendo carcomendo a célula pirada na alma fermentando o gosto nojento na língua. O cheiro daquele único jasmim espalhado sobre os sete viadutos da avenida mais central. Bastava um leve impulso, debruçou-se no parapeito, entrevado, morto da cintura para baixo, da cintura para cima, da cintura para fora, da cintura para dentro — que diferença faz? Oficializar o já acontecido: perdi um pedaço, tem tempo. E nem morri.
Minueto e rondó
Amanhecia. Não havia ninguém na rua.Não, foi assim: debruçado no terraço, ele olhou primeiro para cima — e viu que o azul do céu quase preto aqui e ali se fazia cinza cada vez mais claro em direção ao horizonte, se houvesse horizonte, em todo caso atrás dos últimos edifícios que eram, digamos, um sucedâneo de horizontes. E amanhecia, concluiu então. Debruçado no terraço, ele olhou segundo para baixo — e viu que na longa rua não havia rumores nem carros nem pessoas, sóos sete viadutos também desertos. Não havia ninguém na rua, concluiu ainda.
Debruçado no terraço, amanhecia.
Ao mesmo tempo, em seguida, um de-dentro pensou: e se alguém realmente e finalmente apertou o botão? e se aquele cinza-claro no sucedâneo de horizonte for o clarão metálico? e se eu estava dormindo quando tudo aconteceu? e se fiquei sozinho na cidade, no país, no continente, no planeta? Sabia que não. E um outro de-dentro pensava também, se sobrepujando mais claro, quase organizado, não totalmente porque para dizer a verdade não era um pensamento nem uma emoção, mas algo assim como o cinza-claro brotando natural por sobre o horizonte, se houvesse horizonte, ou como o vento fresco batendo nas cortinas, ou ainda como se uma onda nascesse daquele imóvel mar ativo, ali onde começa a luz, onde começa o vento, onde começa a onda, desse lugar qualquer que eu não sei, nem você, nem ele sabia agora: brotou qualquer coisa como — não quero ser piegas, mas talvez não tenha outro jeito — uma luz, um vento, uma onda. Exatamente. Uma onda calma ou arquejante, um vento minuano ou siroco, uma luz mortiça ou luminosa, repito que brotou, repetiu incrédulo.
Ele teve certeza. Ou claras suspeitas. Que talvez não houvesse lesões, no sentido de perder, mas acúmulos no sentido de somar? Sim sim. Transmutações e não perdas irreparáveis, alices-davis que o tempo levara, mas substituições oportunas, como se fossem mágicas, tão a seu tempo viriam, alices-davis que um tempo novo traria? Não era uma sensação química. Ele não tinha a boca seca nem as pupilas dilatadas. Estava exatamente como era, sem aditivos.Vou-me embora, pensou: a estrada é longa.Tocou então o próprio corpo. Uma glória interior, foi assim que batizou solene, infinitamente delicado, quando ela brotou. Arpejo, foi o que lhe ocorreu, ridículo complacente, cor-nu-có-pia soletrou, quero um instante assim barroco, desejou. Mas vestido de amarelo como estava, visto de costas contra o céu, supondo que uma câmera cinematográfica colocada aqui na porta desta sala o enquadrasse agora pareceria quase bizantino, ouro sobre azul, magreza mística, que tinha sua cultura, sua leitura. E culpa alguma. Gótico, gemeu torcido, unindo as duas mãos no sexo, no ventre, no peito, no rosto e elevando-as acima da cabeça.O sol estava nascendo.Poderia talvez ser internado no próximo minuto, mas era realmente um pouco assim como se ouvisse as notas iniciais de A sagração da primavera. O gosto mofado de morangos tinha desaparecido. Como uma dor de cabeça, de repente. Tinha cinco anos mais que trinta. Estava na metade, supondo que setenta fosse sua conta. Mas era um homem recém-nascido quando voltou-se devagar, num giro de cento e oitenta graus sobre os próprios pés, para deslizar as costas pela sacada até ficar de joelhos sobre os ladrilhos escuros, as mãos postas sobre o sexo.Abriu os dedos. Absolutamente calmo, absolutamente claro, absolutamente só enquanto considerava atento, observando os canteiros de cimento: será possível plantar morangos aqui? Ou se não aqui, procurar algum lugar em outro lugar? Frescos morangos vivos vermelhos.Achava que sim.
Que sim.
Sim.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Pablo Neruda

Não te quero senão porque te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa o meu coração do frio ao fogo.
Quero-te só porque a ti te quero,
Odeio-te sem fim e odiando te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
é não te ver e amar-te,
como um cego.

Tal vez consumirá a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego,
nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero amor,
a sangue e fogo.

Pablo Neruda

Vês estas mãos?
Mediram a terra, separaram os minerais e os cereais,
fizeram a paz e a guerra, derrubaram as distâncias
de todos os mares e rios,
e, no entanto, quando te percorrem a ti,
pequena, grão de trigo, andorinha,
não chegam para abarcar-te,
esforçadas alcançam as palomas gêmeas
que repousam ou voam no teu peito,
percorrem as distâncias de tuas pernas,
enrolam-se na luz de tua cintura.
Para mim és tesouro mais intenso de imensidão
que o mar e seus racimos
e és branca, és azul e extensa como a terra na vindima.
Nesse território, de teus pés à tua fronte,
andando, andando, andando, eu passarei a vida.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Vaidade - Florbela Espanca

Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...

E não sou nada!...

Eduardo Galeano

AS FORMIGAS
Tracey Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia com diversões próprias de sua idade, como qualquer outro doce anjinho de Deus no estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar desde planeta.
Um dia, junto a seus companehiros de escola, Tracey se pôs a atirar fósforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram muito daquele sadio entretenimento infantil; Tracey, porém, ficou impressionada com uma coisa que os outros não viram, ou fizeram como se não vissem, mas que deixou-a paralisada e deixou nela, para sempre, um sinal na memória: frente ao fogo, frente ao perigo, as formigas separavam-se em casais, e assim, de duas em duas, bem juntinhas, esperavam a morte.

A FUNÇÃO DA ARTE/1
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!

A UVA E O VINHO
Um homem dos vinhedos falou, em agonia, junto ao ouvido de Marcela. Antes de morrer, revelou a ela o segredo:
- A uva – sussurrou – é feita de vinho.
Marcela Pérez-Silva me contou isso, e eu pensei: se a uva é feita de vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é.

A TELEVISÃO/2
A televisão mostra o que acontece?
Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar.
A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona.

O BAIXO ASTRAL
Enquanto dura o baixo astral, perco tudo. As coisas caem dos meus bolsos e da minha memória: perco chaves, canetas, dinheiro, documentos, nomes, caras, palavras. Eu não sei se será mau-olhado. Pura casualidade, mas às vezes a depressão demora em ir embora e eu ando de perda em perda, perco o que encontro, não encontro o que busco, e sinto medo de que numa dessas distrações acabe deixando a vida cair.

ANDANÇAS/3
Helena sonhou que telefonava para Pilar e Antônio, e eram tantas as vontades de dar um abraço nos dois que conseguia trazê-los da Espanha pelo aparelho. Pilar e Antônio deslizavam pelo telefone como se fosse um tobogã, e caíam, suavemente, em nossa casa de Montevidéu.

A MORTE
Nem dez pessoas iam aos últimos recitais do poeta espanhol Blas de Otero. Mas quando Blas de Otero morreu, muitos milhares de pessoas foram à homenagem fúnebre feita numa arena de touros em Madri. Ele não ficou sabendo.

CHORAR
Foi na selva, na Amazônia equatoriana. Os índios Shuar estavam chorando a avó moribunda. Choravam sentados, na margem de sua agonia. Uma pessoa, vinda de outros mundos, perguntou:
- porque choram na frente dela, se ela ainda está viva?
E os que choravam responderam:
-Para que ela saiba que gostamos muito dela.

AS IMPRESSOES DIGITAIS
Eu nasci e cresci debaixo das estrelas do Cruzeiro do Sul.
Aonde quer que eu vá, elas me perseguem. Debaixo do Cruzeiro do Sul, cruz de fulgores, vou vivendo as estações do meu destino.
Não tenho nenhum deus. Se tivesse, pediria a ele que não me deixasse chegar à morte: ainda não. Falta muito o que andar. Existem luas para as quais ainda não lati e sóis nos quais ainda não me incendiei. Ainda não mergulhei em todos os mares deste mundo, que dizem que são sete, nem em todos os rios do Paraíso, que dizem que são quatro.
Em Montevidéu, existe um menino que explica:
- Eu não quero morrer nunca, porque quero brincar sempre.

A NOITE/1
Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessando entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Coletânea de Poemas Místicos -Jalal al-Din Husain Rumi

Vem,
Te direi em segredo
Aonde leva esta dança.

Vê como as partículas do ar
E os grãos de areia do deserto
Giram desnorteados.

Cada átomo
Feliz ou miserável,
Gira apaixonado
Em torno do sol.




Ninguém fala para si mesmo em voz alta.
Já que todos somos um,
falemos desse outro modo.

Os pés e as mãos conhecem o desejo da alma
Fechemos pois a boca e conversemos através da alma
Só a alma conhece o destino de tudo, passo a passo.

Vem, se te interessas, posso mostrar-te.



Desde que chegaste ao mundo do ser,
uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses.
Primeiro, foste mineral;
depois, te tornaste planta,
e mais tarde, animal.
Como pode isto ser segredo para ti?

Finalmente, foste feito homem,
com conhecimento, razão e fé.
Contempla teu corpo - um punhado de pó -
vê quão perfeito se tornou!

Quando tiveres cumprido tua jornada,
decerto hás de regressar como anjo;
depois disso, terás terminado de vez com a terra,
e tua estação há de ser o céu.




Não durmas,
senta com teus pares

A escuridão oculta a água da vida.
Não te apresses, vasculha o escuro.
Os viajantes noturnos estão plenos de luz;
não te afastes pois da companhia de teus pares.




Faltam-te pés para viajar?
Viaja dentro de ti mesmo,
e reflete, como a mina de rubis,
os raios de sol para fora de ti.

A viagem conduzirá a teu ser,
transmutará teu pó em ouro puro.




Sofreste em excesso
por tua ignorância,
carregaste teus trapos
para um lado e para outro,
agora fica aqui.


Na verdade, somos uma só alma, tu e eu.
Nos mostramos e nos escondemos tu em mim, eu em ti.
Eis aqui o sentido profundo de minha relação contigo,
Porque não existe, entre tu e eu, nem eu, nem tu.




Oh, dia, levanta! Os átomos dançam,
As almas, loucas de êxtase dançam.
A abóbada celeste, por causa deste Ser, dança,
Ao ouvido te direi aonde a leva sua dança.



Ontem à noite, confidencialmente, eu disse a um velho sábio:
- Não me esconda nada dos segredos do mundo!
Muito docemente, ele me disse ao ouvido:
- Chut! Podemos compreender, mas não exprimir!




Quero fugir a cem léguas da razão,
Quero da presença do bem e do mal me liberar.
Detrás do véu existe tanta beleza: lá está meu ser.
Quero me enamorar de mim mesmo, ó vós que não sabeis!




Eu soube enfim que o amor está ligado a mim.
E eu agarro esta cabeleira de mil tranças.
Embora ontem à noite eu estivesse bêbado da taça,
Hoje, eu sou tal, que a taça se embebeda de mim.




Ele chegou... Chegou aquele que nunca partiu;
Esta água nunca faltou a este riacho
Ele é a substância do almíscar e nós o seu perfume,
Alguma vez se viu o almíscar separado de seu cheiro?




Se busco meu coração, o encontro em teu quintal,
Se busco minha alma, não a vejo a não ser nos cachos de teu cabelo.
Se bebo água, quando estou sedento
Vejo na água o reflexo do teu rosto.




Sou medido, ao medir teu amor.
Sou levado, ao levar teu amor.
Não posso comer de dia nem dormir de noite.
Para ser teu amigo
Tornei-me meu próprio inimigo.




Teu amor me tirou de mim.
De ti, preciso de ti
Noite e dia, eu queimo por ti.
De ti, preciso de ti.




Não posso dormir quando estou contigo
por causa de teu amor.
Não posso dormir quando estou sem ti
por causa de meu pranto e gemidos.
Passo as duas noites acordado
mas, que diferença entre uma e outra!




Não temos nada além do amor.
Não temos antes, princípio nem fim.
A alma grita e geme dentro de nós:
- Louco, é assim o amor.
Colhe-me, colhe-me, colhe-me!



À noite, pedi a um velho sábio
que me contasse todos os segredos do universo.
Ele murmurou lentamente em meu ouvido:
- Isto não se pode dizer, isto se aprende.




A fé da religião do Amor é diferente.
A embriaguez do vinho do Amor é diferente.
Tudo que aprendes na escola é diferente.
Tudo que aprendes do Amor é diferente.




- Vem ao jardim na primavera, disseste.
- Aqui estão todas as belezas, o vinho e a luz.
Que posso fazer com tudo isso sem ti?
E, se estás aqui, para que preciso disso?