terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Eduardo Galeano

AS FORMIGAS
Tracey Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia com diversões próprias de sua idade, como qualquer outro doce anjinho de Deus no estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar desde planeta.
Um dia, junto a seus companehiros de escola, Tracey se pôs a atirar fósforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram muito daquele sadio entretenimento infantil; Tracey, porém, ficou impressionada com uma coisa que os outros não viram, ou fizeram como se não vissem, mas que deixou-a paralisada e deixou nela, para sempre, um sinal na memória: frente ao fogo, frente ao perigo, as formigas separavam-se em casais, e assim, de duas em duas, bem juntinhas, esperavam a morte.

A FUNÇÃO DA ARTE/1
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!

A UVA E O VINHO
Um homem dos vinhedos falou, em agonia, junto ao ouvido de Marcela. Antes de morrer, revelou a ela o segredo:
- A uva – sussurrou – é feita de vinho.
Marcela Pérez-Silva me contou isso, e eu pensei: se a uva é feita de vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é.

A TELEVISÃO/2
A televisão mostra o que acontece?
Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar.
A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona.

O BAIXO ASTRAL
Enquanto dura o baixo astral, perco tudo. As coisas caem dos meus bolsos e da minha memória: perco chaves, canetas, dinheiro, documentos, nomes, caras, palavras. Eu não sei se será mau-olhado. Pura casualidade, mas às vezes a depressão demora em ir embora e eu ando de perda em perda, perco o que encontro, não encontro o que busco, e sinto medo de que numa dessas distrações acabe deixando a vida cair.

ANDANÇAS/3
Helena sonhou que telefonava para Pilar e Antônio, e eram tantas as vontades de dar um abraço nos dois que conseguia trazê-los da Espanha pelo aparelho. Pilar e Antônio deslizavam pelo telefone como se fosse um tobogã, e caíam, suavemente, em nossa casa de Montevidéu.

A MORTE
Nem dez pessoas iam aos últimos recitais do poeta espanhol Blas de Otero. Mas quando Blas de Otero morreu, muitos milhares de pessoas foram à homenagem fúnebre feita numa arena de touros em Madri. Ele não ficou sabendo.

CHORAR
Foi na selva, na Amazônia equatoriana. Os índios Shuar estavam chorando a avó moribunda. Choravam sentados, na margem de sua agonia. Uma pessoa, vinda de outros mundos, perguntou:
- porque choram na frente dela, se ela ainda está viva?
E os que choravam responderam:
-Para que ela saiba que gostamos muito dela.

AS IMPRESSOES DIGITAIS
Eu nasci e cresci debaixo das estrelas do Cruzeiro do Sul.
Aonde quer que eu vá, elas me perseguem. Debaixo do Cruzeiro do Sul, cruz de fulgores, vou vivendo as estações do meu destino.
Não tenho nenhum deus. Se tivesse, pediria a ele que não me deixasse chegar à morte: ainda não. Falta muito o que andar. Existem luas para as quais ainda não lati e sóis nos quais ainda não me incendiei. Ainda não mergulhei em todos os mares deste mundo, que dizem que são sete, nem em todos os rios do Paraíso, que dizem que são quatro.
Em Montevidéu, existe um menino que explica:
- Eu não quero morrer nunca, porque quero brincar sempre.

A NOITE/1
Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessando entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta.

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